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Arte Drag

A composição transformista contra o rótulo

Foto: Cecília Ferreira


Na cidade de São Paulo, há inúmeras expressões artísticas vivendo por suas ruas. São artistas que lutam constantemente pela valorização e reconhecimento de sua arte, mantendo, muitas vezes, uma vida dupla junto de outra profissão. Uma dessas expressões é a Arte Drag, ligada ao transformismo, são pessoas que se transformam (o termo popular é se montam) em determinado personagem e fazem performances dentro dessa nova personalidade criada. É uma expressão muito ligada ao universo LGBT, o que acaba virando um estereótipo para os artistas, pois essa forma de arte não limita ninguém, abrindo espaço para qualquer pessoa, independentemente de sua orientação sexual e identidade de gênero.


Criação de personagem


Gabriel Letho, 23 anos, criou a personagem Athena na faculdade de artes cênicas. Ele revela que em uma das peças do curso, tinha um personagem que estava escrito como travesti, mas ao ler roteiro, percebeu que era uma Drag Queen, algo completamente diferente do termo escrito. Ao notar esse estereótipo, ele foi abordar a professora. “O homem que se veste de mulher pra fazer performance não é uma travesti, ele é uma Drag Queen. A professora, felizmente, concordou comigo e por isso ela resolveu me dar o papel, e eu não tinha ideia de como fazer Drag”, declara Gabriel. Foi dessa forma que nasceu Athena Letho, uma personagem alegre e com foco na comédia. Apesar do estereótipo carregado no roteiro, ele revela que ficou feliz pelo ocorrido, pois foi uma forma de encontrar aceitação consigo mesmo. “O que me inspirou foi eu tentar buscar em mim mesmo uma forma de aceitação da qual eu ficasse confortável comigo mesmo e eu comecei a perceber que a primeira vez que eu sai montado, o tratamento que as pessoas tiveram comigo foi muito diferente de quando eu estou de boy, e aquilo me deu gosto”, explica o ator.


A criação de um personagem também pode servir para quebrar os preconceitos estabelecidos consigo mesmo. Foi o caso de Emerson Macedo, ator de 22 anos, que criou a personagem Maldita Geni com o objetivo de se desconstruir. Ele conta que carregava uma visão estereotipada do cenário Drag, achando que transexuais e travestis eram a mesma coisa. “Eu tinha amigos que faziam Drag, só que eu pensava que eles queriam aparecer, um desejo enrustido de ser mulher, eu não entendia como arte. Até que bem depois, no último ano da faculdade, eu comecei a estudar sobre gêneros pro TCC, e conheci pessoas que falavam sobre gênero, sexualidade, aí comecei a me desconstruir e ver como arte”, conta Emerson. Ele notou que não havia diferença em seu trabalho de ator para o trabalho de Drag, ambas eram expressões artísticas onde uma pessoa constrói um personagem. Nesse processo de pesquisa, em uma de suas disciplinas da faculdade, a prova final era Drag Queens, onde os alunos tinham que criar um personagem, e embora não se orgulhe muito do primeiro resultado, gostou de todo o processo. Para aprimorar sua arte, Emerson se matriculou em curso de iniciativa do projeto VAI (Valorização de Iniciativas Culturais), onde teve aulas sobre figurino, maquiagem, performance e passarela com Drags renomadas como Alexia Twister e Yasmin Carraroh, e foi nesse curso que nasceu Maldita Geni.


Maldita Geni é uma Drag inspirada na música Geni e o Zepelim, de Chico Buarque. É uma canção que sempre marcou muito Emerson, pois segundo ele, a letra retrata uma sociedade hipócrita, que julga as pessoas verdadeiras consigo mesmas. A estética é inspirada no expressionismo, a personagem é andrógena e militante de diversas causas. “Eu também costumo sempre levantar a bandeira da negritude, pois enquanto pessoa negra, acho isso muito importante. Eu observava que a maioria das Drags negras, que já não são muitas, eram embranquecidas pela maquiagem que aprendemos”, observa o ator.


A ideia da personagem ser andrógena surgiu pela transgressão que essa arte pode proporcionar ao seu criador. Emerson queria brincar com a ideia dos gêneros, pois mesmo no universo Drag, ainda existe muita heteronormatividade. As Drags que não se parecem tanto com mulheres são menosprezadas, as mulheres que se montam sofrem preconceito, tudo está estabelecido dentro dos parâmetros dos gêneros. “Por mais que você se transforme, ficar preso na heteronormatividade é complicado, então eu quis desconstruir isso. Eu faço uma drag andrógena, ela já usou bigode, ela desde início usa barbicha, nunca coloquei seios, enchimentos, deixo meus pelos amostra, e gosto de deixá-los justamente porque não me incomoda, mas por outro lado incomoda muita gente, e eu recebo muitas críticas por causa disso”, completa o intérprete. Por causa de sua estética, ele já sofreu várias críticas, mas isso acaba o motivando a confrontar os padrões estabelecidos.


Professora de Emerson e inspiração para Gabriel, Yasmin Carraroh é Drag há 11 anos começando com 14. Ela revela que no início de sua carreira as dificuldades eram enormes comparadas ao cenário atual. “Antigamente tudo era difícil, um cabelo era difícil, uma roupa de show era difícil, ter visibilidade era difícil. Quando comecei era tudo uma questão de experiência”, explica a artista. Seu nome original é Paulo Sérgio, e criou a Yasmin inspirado na transformista Fernanda Carraroh, na qual pegou o sobrenome.


Hoje, Paulo já consegue se manter financeiramente como Yasmin trabalhando em diversos eventos e fazendo shows por todo o Brasil. Ele também é professor do curso Imagem da Imaginação, do qual Emerson foi aluno. “A ideia de ser professor surgiu depois que eu participei do reality Academia de Drags. Eu tinha sido um aluno desse curso e recebi um convite para dar aulas”, relata Paulo. Ao entrar no curso, ele decidiu reformular o projeto, deixando mais dinâmico e atrativo para os alunos. Com a visão de Yasmin, hoje o curso conta com um Workshop de 12 aulas, ensinando aos alunos a expressarem sua identidade Drag através das roupas, maquiagens e caracterizações, algo fundamental para os artistas.


São Paulo e o cenário Drag


Gabriel e Emerson vivem no cenário Drag de São Paulo, uma cidade que oferece mais espaço para essa arte crescer, mas ao mesmo tempo, as oportunidades estão voltadas para determinadas regiões da cidade, sendo o eixo Centro-Paulista-Augusta o principal deles. Em regiões periféricas, a situação é um pouco diferente, apresentando um cenário bem menos expressivo.


Gabriel é morador da Zona Leste e revela que sempre ao sair de casa como Athena, procura ir acompanhado. Ele já recebeu vários olhares estranhos perto de sua casa, mas nunca ocorreu uma agressão. Mas relembra um caso interessante que ocorreu na região central da cidade, onde o público costuma ser mais aberto: “Quando eu saio de casa montada e os vizinhos olham, eu nunca recebi nenhum tipo de represália, mas já mexeram comigo na Augusta, já me xingaram por lá. Claro que rola uma diferença entre o centro e a periferia, às vezes eu tenho medo de andar pelas ruas de casa porque rola uns olhares estranhos, mas a única vez que me xingaram foi na Augusta e provavelmente não era alguém que morava lá, e pelo perfil da pessoa não era alguém periférico”, lembra. O relato de Gabriel demonstra o quanto São Paulo é uma cidade complexa e que o preconceito pode estar em qualquer lugar, mesmo onde sua arte é mais aceita.


Já Emerson, morador do bairro de Perus, passou por uma situação interessante em um bairro de periferia. Ele fazia o curso Imagem da Sua Imaginação no Centro Cultural da Penha. Em um dos ensaios gerais, todos os alunos estavam montados e precisavam fazer uma pausa para almoçar. Como era um domingo, o lugar mais próximo aberto era o Shopping Penha, e eles decidiram ir ao shopping caracterizados, pois tinham que retomar os ensaios depois e levaria muito tempo para tirar todo o figurino e a maquiagem. Ao chegar no local, todos foram barrados e proibidos de entrar. “Os seguranças nos barraram e disseram que a gente não podia entrar por excesso de maquiagem e roupas curtas, mas havia mulheres entrando com excesso de maquiagem e roupas curtas, só conseguimos entrar depois que chamamos a polícia. A gente gravou o ocorrido, eu postei no Facebook, e conseguimos atingir uma visibilidade”, ressalta Emerson. A repercussão do caso foi tão grande que saiu em diversos jornais e emissoras de televisão.


Semanas depois, com o objetivo de protestar contra a ação homofóbica dos seguranças, o estudante de história, Thiago Ketu, morador do bairro da Penha, entrou em contato com Emerson para organizar um ato de manifesto. Thiago não faz Drag, mas resolveu se montar para esse evento específico e ajudar na causa. “Aceitar esse tipo de prática em pleno século XXI é reafirmar a prática da homofobia. Então foi por isso que eu decidi me montar e contribuir com o evento”, destaca o estudante. A manifestação contou com cerca de 30 pessoas e teve uma recepção amigável por parte dos lojistas e frequentadores do shopping. A situação só ficou mais complicada quando o ato se concentrou na praça de alimentação com um desfile de Drags. “Foi a hora mais tensa do evento porque veio o responsável de imprensa do shopping e eu indaguei ele sobre qual era a atitude do shopping, ele disse que era a nota publicada. Uma nota curtíssima não se desculpando pelo que houve, mas falando que as medidas foram tomadas”, explica Thiago. Ao longo do evento, nenhum responsável explicou que tipo de medidas foram tomadas para evitar esse tipo de acontecimento, mas Thiago acredita que os seguranças responsáveis por barrar as Drags foram demitidos, pois depois do evento, nunca mais os viu na região. Ele conclui de forma otimista, acreditando que o estabelecimento reviu sua política, e que situações como essa não acontecerão novamente.


Em contraponto com esse caso no bairro da Penha, Paulo revela que recebe muito apoio de bairros da periferia. “Eu faço muitos eventos em periferia e sou muito bem recebido, faço shows em CEU de periferias e diversas famílias vão assistir. Graças a Deus comigo não aconteceu nada e as pessoas são muito carinhosas”, acrescenta o artista por trás de Yasmin Carraroh. Apesar de situações intolerantes ainda ocorrerem em diferentes pontos da cidade, a carreira de Paulo mostra que São Paulo pode ter receptividade com essa arte, tanto em regiões mais nobres como nas periferias.


Estereótipos da Arte Drag


A comunidade Drag, ainda hoje, é sujeita a muitos rótulos e estereótipos que a sociedade impõe, e no próprio meio LGBT, onde estão as maiorias das Drags, existe preconceito e estereotipização dos artistas. Gabriel revela que existe um estigma de que Drag faz programa. “Eu não sei de onde tiraram essas coisas, mas é o senso comum que a gente tenta quebrar. E justamente por a gente viver em uma sociedade heteronormativa, os gays heteronormativos associam a Drag a questão do gay afeminado”, aponta o ator. Os gays com trejeitos femininos acabam sofrendo mais preconceito, justamente por fugirem do padrão masculino tão valorizado na sociedade, e também no próprio meio LGBT. É uma espécie de preconceito dentro do preconceito, que acaba sendo ligado ao universo Drag.


O assédio é outra questão envolvendo as pessoas que fazem Drag, também estando ligado ao rótulo de prostituição. Emerson já passou por situações onde as pessoas o tocavam sem pedir nenhuma autorização. “Quando eu saio de Drag, as pessoas me tocam como se eu fosse um brinquedo, e quando eu repreendo, elas ficam nervosas, elas ficam bravas, se sentem ofendidas como se elas realmente tivessem direito ao meu corpo”, ressalta ele.


A Rua Augusta é um dos pontos mais populares do cenário Drag de São Paulo, é um lugar de muita celebração dessa arte, mas também onde ocorrem situações preconceituosas. Gabriel já foi xingado andando pela rua e Emerson chegou a ser muito assediado. “Em uma noite, um cara parou em um carro e pediu pra conversar com a gente, ele começou a oferecer dinheiro pra sair com uma de nós”, relembra o intérprete de Maldita Geni. Nesse mesmo dia, Emerson foi assediado por vários homens e um até chegou a abaixar as calças na frente dele e de suas amigas. “Foi um dia muito tenso, foi a primeira vez que eu senti o peso da transfobia, porque eu como pessoa cis nunca senti, mas minha personagem é trans. Eles estavam interessados em nós como fetiche e jamais assumiriam isso para outras pessoas”, constata o artista.


Mas além desses estigmas, há um preconceito com mulheres que são Drags. Paulo já deu aulas para meninas e acha ótimo que essa arte esteja se expandindo para outros públicos, mas conta que já presenciou situações de preconceito contra as mulheres dentro do próprio meio LGBT. “Os gays pensam que a arte Drag se limita só para os homens, mas eu acho impecável mulheres que se montam. Tem espaço para todas: homem, mulher, trans”, explica o professor.


A maquiadora e atriz Bruna Kawaguchi criou a personagem Ginger Moon há um ano e três meses. Acostumada com esse universo, ela sempre teve amigos Drags, mas não sabia que também podia ser uma. “Por ser uma mulher cis, nunca soube que poderia fazer drag algum dia. Aí quando comecei a frequentar mais as baladas LGBTs vieram me falar sobre mulheres drags e comecei a pesquisar e fazer amizade com algumas”, afirma a maquiadora. O preconceito com Bruna aparece bastante através da internet, mas ela é bem otimista em relação a isso, acreditando que São Paulo está com muita diversidade de Drags, abrindo cada vez mais espaço de fala para os artistas.



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