Memórias de uma mulher que leva a vida embaixo da ponte
Foto: Cecilia Ferreira
A ocupação da 9 de julho seria igual a todas as outras, não fosse por Adriana. Negra, cacheada, vaidosa. Misto de simpatia e coragem. Deitou ali na calçada, pela primeira vez, há 8 meses. Na rua, há 6 anos. Ela, Adriano e o cãozinho Bob em uma sinfônica avenida composta pelo barulho dos carros.
Enfermeira pelo SENAC, acha-se na rua por amor. Há 7 anos conheceu seu homem. Perguntou seu nome, era Adriano. Ela contou o seu, Adriana. Um fogo ardeu e juntou um e outro. Sua família de Aparecida não entendia tamanho afeto. Ele era só um pedreiro. Ela, uma enfermeira. Num dia anunciaram a decisão. "Ou ele ou nós". Adriana seguiu seu coração.
Desde então, de domingo a domingo, bate os chinelos nas calçadas da redondeza. Em seu trabalho espia de longe o carro dos feirantes. Ao fim do dia, embolsa umas bananas e maçãs. Seu marido cuida das construções e recebe uns 87 reais do bolsa família. Com os trocados compra arroz, feijão e corote. Um vidro por dia.
Para a mansão de sua família ela vai em alguns finais de semana. Dá um beijo em sua mãe, mima as sobrinhas. Querem que ela volte. Seu quarto está intacto, sua cama ainda feita. Mas lá Adriano não pisa.
Em sua cômoda de madeira fica uma bolsa de academia. É sua maleta de tesouros. Documentos, um creme de cabelo cacheado, uma colônia e a bíblia. Ela lê de quando em quando. Diz ser evangélica, mas às vezes é budista. Às vezes católica. Às vezes umbandista. Se todas religiões pregam o amor, para ela é o que importa.
Seu cantinho fica frente ao Centro Pop. Um atendimento da prefeitura às pessoas de rua. É lá que toma banho, que recebe produtos de higiene. Dão sabonete, absorvente, shampoo e pasta de dente. Só não dão comida. Lá falta recurso. Uns pedaços de papel higiênico substituem um absorvente. Vez ou outra, levam o pessoal para o hospital na perua. O tratamento é carinhoso. Adriana troca abraços e beijos com a assistente social e sabe o nome de todos.