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Os Sem-Teto da metrópole

Como 200 mil habitantes sem moradia sobrevivem na maior cidade do país

Foto: Alexa Meirelles

“Meu marido queria fazer um puxadinho. Melhor não... A gente não sabe o quanto isso aqui vai durar”. Eliane Francisca da Cruz, 49 anos, trabalha como assistente administrativa e o salário que ganha não paga um aluguel de mais de mil reais. Mesmo em um bairro periférico. Mesmo em São Mateus. Enquanto se arrumava para ir ao culto de sábado com o marido, a filha e os netos, Eliane conta como foi se mudar para um terreno ocupado por um movimento de moradia. O terreno é da empresa Golden Empreendimentos, avaliado em 11 milhões de reais, e está inabitado e improdutivo a mais de 20 anos. As netas diziam à avó que não queriam viver “na favela”. Hoje, brincam nas ruelas do terreno com as outras crianças que vivem ali – cerca de 50, contando só as “muito pequenas”. O marido de Eliane passa o café enquanto tenta argumentar sobre a possibilidade do puxadinho. Os dois cômodos onde o casal vive dividem espaço com mais dezenas de barracos de madeira e casinhas de alvenaria. Eliane insiste que o puxadinho pode ser dinheiro jogado fora, já que o terreno pode sofrer, a qualquer momento, uma terceira tentativa de reintegração de posse.


Dentro do movimento Frente de Luta Por Moradia, braço do MTSC – Movimento dos Sem Teto do Centro, Eliane é secretária. Sua principal função é cuidar do cadastro das famílias. Já são mais de 200 e ainda há uma considerável fila de espera. “O critério para vir para cá? Precisar de moradia. A gente prioriza família. Mas quem precisar, pode vir”.Enquanto saía de braço dado com o marido rumo à igreja, já em passos muito rápidos pelo atraso, encontrou com seu Nilmar, que conversava com os genros no portão de sua pequena casa de três cômodos, com paredes pintadas em tons de lilás – a cor favorita da esposa. Nilmar Souza Barbosa, de 46 anos, vive na ocupação há 1 ano e meio. Transplantado, recebe um salário mínimo e não consegue bancar um aluguel todo o mês.


Depois de acertar alguns detalhes da próxima assembleia de moradores com Eliane – que falava muito rápido, mas aparentemente todos ali já estavam acostumados – a esposa de Nilmar foi passar café também. Ironicamente, todo barraco ali tem café: uns mais fortes, outros doces demais, mas sempre tem. Ele não trabalha, mas é braço direito da liderança e reitera sobre a importância de todos ajudarem ali. E qualquer ajuda é bem-vinda: desde separar uma briga entre vizinhas por causa dos canos do esgoto, até conseguir restos de blocos de cimento para “asfaltar” o chão batido de barro, para que não vire lama quando chover. “A gente vive preocupado, arriscando, é um jogo. A gente faz o máximo pra colaborar (sic). Se todo mundo fosse assim, seria mais fácil de lutar. A gente sabe que nada aqui é permanente...”


A cooperação entre os moradores é a forma de sobrevivência ali dentro, e a forma de resistir aos que estão de fora. À justiça, aos advogados e mandatos, todos dizendo que eles devem sair. Por isso, há essa necessidade de mostrar a todos que tudo ali é muito dentro dos conformes. “A gente vive constantemente essa ‘opressão’, de a qualquer momento alguém pode chegar e tirar a gente daqui. Mas deveriam escutar a gente, a gente é trabalhador e não quer isso aqui de graça. A gente quer e pode negociar”, diz Eliane, antes de finalmente conseguir sair.


São Paulo possui cerca de 200 mil habitantes sem moradia, segundo os dados mais recentes do IBGE. Estranhamente, a cidade possui quase o dobro de imóveis e áreas inabitadas. Ou seja, em tese, há espaço físico para todos, logo: por que há gente sem moradia, um direito assegurado pela Constituição federal? O monstro desumano da especulação imobiliária e suas kitnets de mil-e-quinhentos reais por mês, o sistema nada cíclico que resigna uns ao Morumbi e outros à Paraisópolis. Os chamados “sem-teto” são marginalizados – pelo poder público e do restante da população. Restam duas alternativas: viver nas ruas, ou ocupar.


Ocupar, contudo, torna-se ato de coragem. Os movimentos de moradia, com as suas bandeiras e barracas e brados e ideologias Polianescas colocam-se debaixo de algum holofote de luz fraca e trêmula, e resiste não só às instâncias de poder, mas à cidade que os circunda. Para o certo ou errado, os movimentos de moradia não são muito bem vistos. Para a população, é inconcebível que grupos de pessoas passem a viver em áreas e imóveis privados. Em uma cidade como São Paulo, não é aceitável “invadir” algo que foi conquistado pelo trabalho alheio.


Recentemente, o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto) ocupou parte da Avenida Paulista, reivindicando ampliação e flexibilização do programa Minha Casa Minha Vida do governo federal. Sendo um dos polos financeiros e empresariais em São Paulo – e, sobretudo, sendo uma região de classe alta – a ocupação revoltou moradores da região. As tendas vermelhas do movimento destoavam dos prédios espelhados da avenida, e os sem-teto eram constantemente hostilizados por quem passava por ali. Uma moradora que não quis se identificar desfilava entregando um abaixo-assinado para comerciantes da área. Com tom de indignação, ela afirmava que o movimento - que se concentrava próximo à estação Consolação do metrô - tomaria toda a avenida.


Já nos extremos da cidade, a recepção é diferente. Quando não é indiferente, os moradores de bairros mais afastados costumam ajudar. “Quando a gente veio pra cá, doavam madeira todos os dias pra gente construir os barracos. Chega tudo, todo o tipo de ajuda que você pode imaginar”. Rosicler Bento de Lima, 47 anos, é coordenadora da ocupação do terreno da Golden Empreendimentos. Mãe de 5 filhos e ex-presidiária por tráfico de drogas, a líder do movimento se engajou na luta por moradia em 2011. “Há um ano e oito meses, peguei essa responsabilidade de assumir aqui. Ninguém queria assumir tudo. Pus a cara pra bater”. Hoje, divide seu tempo entre o trabalho na Frente de Luta Por Moradia e a escola, onde cursa o 1º ano do ensino médio, já visando cursar Serviço Social na universidade.


Quando questionada sobre a visão que a cidade tem das ocupações, Rosicler diz não se importar. “A gente se fecha aqui. Faz um apagão. Não articula com mídia nenhuma, que chamam o que a gente faz de invasão, mas não é. Tá na Constituição. É direito nosso, né não, seu Nilmar?”, gritava do portão, enquanto fumava seu cigarro e também tomava o café da casa. Rosi vive em um barraco mais afastado, mas está sempre na casa de todos (até porque é requisitada a todo momento). Mora com o marido, mas já pensa na separação. A justificativa? Não tem tempo parra casamento. Segundo ela, “lutar por moradia para os outros” é suficientemente gratificante. “Pra estar aqui, todo mundo tem que trabalhar ou sair cedo pra procurar emprego. As crianças têm que estar todas na escola. Ninguém pode ficar sentado dentro do barraco. Todo mundo vai pra luta juntos, porque isso aqui é pra todo mundo. Mas é direito nosso. Todo mundo deveria ter onde morar”.


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